“Cette branche trop
negligée de l’anthropophagie ne se
meurt point, l’anthropophagie n’est point morte.”
(Alfred Jarry, “Anthropophagie”, 1-3-1902)
“Para comer meus
próprios semelhantes Eis-me sentado à mesa.”
(Augusto dos Anjos, Eu, 1912)
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Das revistas ligadas ao Modernismo, as mais características e representativas foram KLAXON e a REVISTA DE ANTROPOFAGIA, ambas publicadas em São Paulo.
Tivemos em 1972 a reedição de KLAXON, reproduzindo fascsimilarmente, com capas e cores, os nove números originais, que apareceram entre maio de 1922 e janeiro de 1923.
Da REVISTA DE ANTROPOFAGIA, até aqui a mais desconhecida, e sem dúvida a mais revolucionária do nosso Modernismo, não havia esperança de republicação. Jose Luis Garaldi — garimpador dessas raridades — descobriu uma coleção quase completa da revista, que fora de Tarsila, agora pertencente a Oswaldo Estanislau do Amaral Filho, sobrinho da grande pintora. Faltava apenas uma página do “Diário de São Paulo”, que a sorte fez cair nas mãos de Garaldi e com a qual foi completada a coletânea. Daí nasceu a idéia de repor em circulação esses documentos explosivos da nossa história literária (viva), reproduzindo-os, tal como se fez com KLAXON, em sua saborosa fisionomia original. É o que o leitor tem agora em mãos. Pediram-me que escrevesse uma introdução ao volume. Acabou saindo mais longa do que eu imaginava, e mais apaixonada. Sinal, quando menos, de que os nossos “antropófagos” continuam a interessar, e de que a “antropofagia” realmente não está morta.
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A primeira foi KLAXON. Graficamente a mais bela das revistas do Modernismo, com seus tipos decorativos, sua numeração graúda e o choque visual de suas capas e contracapas: o enorme “A” vertical vertebralizando as palavras.
Espantosamente frágil, ingênua, amadorística. Um primeiro toque-de-reunir modernista, no ambiente hostil da época, após a bravura da Semana. Mas também um salve-se-quem-puder modernoso, onde a maior parte naufraga em ondas subfuturistas ou pós-impressionistas – ressaca internacional de arte moderna.
Os melhores poemas de KLAXON estão na quarta-capa: os anúncios espaciais Coma Lacta, Guaraná Espumante e os criativos pseudo-anúncios de Pantosopho, Panteromnium & Cia, proprietários da Grande Fábrica Internacional de Sonetos, Madrigais, Baladas e Quadrinhas. Dentro, há os poemas prometedores de Luis Aranha. Os de Mário de Andrade, ainda incipientes, cheios de tiques, retóricos. De Oswald, nem há colaboração poética. Um trecho de A Estrela de Absinto e algumas notas, “Escolas & Idéias”, esboço ainda imaturo da linguagem dos manifestos posteriores. O resto – que fazer? – era o resto. Guilherme. Menotti. Serge Milliet. Colaboração internacional do 2.° ou 3.° time europeu: Nicolas Bauduin, Guillermo de Torre, Antonio Ferro e uns franceses, belgas e italianos que ninguém sabe mais quem são. Escassez de matéria-prima num terreno movediço onde, entre outras ervas, até poema de Plínio Salgado dava. Ruim, é claro.
Confusão teórica. O “Balanço de Fim de Século” de Rubens Borba de Moraes (no n.° 4) mistura, numa mesma salada, cubistas, dadaístas, futuristas, unanimistas, bolchevistas e espíritas. Critica impressionista (e indulgente). De uma resenha de Mário sobre A Mulher que Pecou de Menotti: “Mais um livro do nosso admirável colaborador. ( … ) o novo livro de Menotti del Picchia assim julgamos: Dos melhores da literatura brasileira. ( … ) A figura de Nora é uma figura humana. Move-se como poucas outras da ficção nacional. ( … ) Como língua: virilidade, expressão, beleza. Imagens luxuriantes. Repetições. Adjetivação sugestiva. Descrições magníficas. Poesia. ( … ) Menotti del Picchia é um artista.”
Um modernismo mitigado, tolerante, não isento de compromissos com a linguagem convencional e com os valores da tradição. “Sabe o que é para nós ser futurista? É ser kláxico”, já ironizava Oswald. O manifesto do 1.° número prometia. Mas de que adiantava Mário de Andrade preferir Perola White a Sarah Bernhardt, se ele continuava perdendo tempo com Guiomar Novaes (“É meu dever explicar porque considero a senhorinha Novaes uma pianista romântica.”)?
Claro que os nossos modernistas da primeira hora – considerado o contexto desinformado e provinciano – podem ser olhados com maior brandura. Mas se estou enfatizando, com crueza, aspectos negativos da produção modernista no primeiro e significativo periódico dos moços da Semana de 22, é exatamente para que se possa entender a posição crítica que, em relação aos seus próprios companheiros, assumirão, mais adiante, Oswald e os “antropófagos” mais radicais.
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REVISTA DE ANTROPOFAGIA. Duas fases (“dentições”) nitidamente distintas. A primeira, revista mesmo, em Formato de 33 por 24 cm, com modestas 8 páginas: 10 números, editados mensalmente, de maio de 1928 a fevereiro de 1929, sob a direção de Antonio de Alcântara Machado, gerência de Raul Bopp. Depois, veio a nova fase (a da 2.ª dentição, como esclarecia o subtítulo) da revista, agora limitada a uma página do “Diário de São Paulo”, cedida aos “antropófagos” por Rubens do Amaral, que chefiava a redação do jornal na época. Foram 16 páginas, publicadas com certa irregularidade, mas quase sempre semanalmente, de 17 de março a 1.º de agosto de 1929 (a 16.ª página saiu, por engano, com o mesmo número da anterior). Nos quatro primeiros números, além do subtítulo, a indicação: orgão do clube de antropofagia. A partir do 5.º: orgão da antropofagia brasileira de letras.
Na 1ª dentição, a revista está ainda marcada por uma consciência ingênua não muito distante da que informou o modernismo klaxista, apesar dos seis anos decorridos. Raul Bopp depõe depois (1966): “A antropofagia, nessa fase, não pretendia ensinar nada. Dava apenas lições de desrespeito aos canastrões das Letras. Fazia inventário da massa falida de uma poesia bobalhona e sem significado.”
É verdade que lá está, no primeiro número, o genial Manifesto Antropófago de Oswald, que junto com o Manifesto da Poesia Pau Brasil, publicado dois anos antes, resulta na formulação mais consistente que nos deixou o Modernismo. Mas Oswald já estava quase sozinho. Nos 10 números da revista, o único texto que se identificava plenamente com as idéias revolucionárias do manifesto, era A “Descida” Antropófaga, artigo assinado por Oswaldo Costa, igualmente no n.º 1. Um “doublé” de Oswald (até no nome) que diz: “Portugal vestiu o selvagem. Cumpre despi-lo. Para que ele tome um banho daquela “inocência contente” que perdeu e que o movimento antropófago agora lhe restitui. O homem (falo do homem europeu, cruz credo!) andava buscando o homem fora do homem. E de lanterna na mão: filosofia. ( … ) Nós queremos o homem sem a dúvida, sem sequer a presunção da existência da dúvida: nu, natural, antropófago.” E lança um dos “slogans” do movimento: “Quatro séculos de carne de vaca! Que horror!”
Comparar as incisivas tomadas de posição dos dois Oswaldo com a “nota insistente” publicada “no rabinho do primeiro número da Revista” e assinada por Alcântara Machado e Raul Bopp:
“Ela (a “Revista de Antropofagia”) está acima de quaisquer grupos ou tendências; Ela aceita todos os manifestos mas não bota manifesto;
Ela aceita todas as críticas mas não faz crítica;
Ela é antropófaga como o avestruz é comilão;
Ela nada tem que ver com os pontos de vista de que por acaso seja veículo.
A “Revista de Antropofagia” não tem orientação ou pensamento de espécie alguma: só tem estômago.”
Estômago resistente. A ponto de abrigar, sem aparente indigestão, de Plínio Salgado a Yan de Almeida Prado… Claro que Oswald e os “antropófagos” radicais, que, logo mais, na 2.ª dentição, refugariam a Anta, opondo-lhe a imagem do Tamanduá (“Por isso não queremos anta, queremos tamanduá. O nosso bicho é o tamanduá bandeira. Nossa bandeira é o tamanduá. Ele enterra a língua na terra, para chupar o tutano da terra. As formigas grudam na língua dele, mordendo, queimando. Ele engole as formigas.”) não iriam se conformar com essa deformação da imagem do antropófago – o avestruz, ave de apetite onívoro e estômago complacente e, aliás, estrangeira… Emblemática da política cultural da revista, nessa primeira fase, a imagem do avestruz mostra como a Antropofagia – excetuados os casos de Oswald e Oswaldo – era tomada no seu sentido mais superficial pela maioria, não ultrapassando, no mais das vezes, a idéia da “cordial mastigação” dos adversários ostensivos do Modernismo. É o que explica a assimilação indiscriminada de autores que nada têm a ver com os pressupostos da Antropofagia, enquanto movimento. O que faz, por exemplo, no n.º 5, um sr. Peryllo Doliveira, da Paraíba, com seu pedaço de poema “A Voz Triste da Terra” (“Mas agora meu Deus é impossível voltar!”)? O que faz Augusto Frederico Schmidt com o poema penumbrista “Quando eu Morrer”, no n.º 10? Estômago de avestruz!
Mas a despeito da indefinição teórica e poética, a REVISTA DE ANTROPOFAGIA não deixou de contribuir, mesmo nessa primeira fase, como veículo – o mais importante da época – para a evolução da linguagem do nosso Modernismo. Não bastasse o Manifesto de Oswald, associado ao bico-de-pena de Tarsila (uma réplica do “Abaporu” ou Antropófago, um dos seus mais notáveis quadros), lá estão: o fragmento inicial de Macunaíma (n.º 2), o radical “No Meio do Caminho” de Drummond (n.º 3), que reaparece, epigramático, com “Anedota da Bulgária”, no n.º 8; “Sucessão de São Pedro”, do melhor Ascenso Ferreira (n.º 4); “Noturno da Rua da Lapa” de Manuel Bandeira (n.º 5); “República”, de Murilo Mendes (n.º 7), então bem impregnado de “pau brasil” e bastante à vontade numa revisão desabusadamente poética e crítica da nossa história, iniciando a série que irá integrar o volume de poemas História do Brasil (1932), lamentavelmente excluído da edição Poesias (1922-55), em 1959. E algumas das primeiras produções de Raul Bopp (Jacó Pim-Pim), Jorge de Lima, Augusto Meyer e outros. Curiosidades: poemas de Josué de Castro e Luis da Câmara Cascudo, crônica de Santiago Dantas.
O que há de mais afinado com o espírito irreverente da Antropofagia, em sua face mais autêntica e agressiva, é a seção Brasiliana, que aparece em todos os números, e onde se reúnem, à maneira do “sottisier” de Flaubert, notícias de jornais, trechos de romances, discursos, cartões de boas festas, anúncios, circulares – textos “ready made” que denunciam a amena poluição da imbecilidade através da linguagem cotidiana e convencional. Como o anúncio compilado no n.º 3, verdadeiro poema-“trouvé”:
“A CRUZ DA TUA SEPULTURA ENCERRA UM MISTÉRIO – Valsa com letra; foi escrita junto a uma campa. Vende-se a rua do Teatro, 26.”
Alcântara Machado tem, na revista, aproximadamente, o papel de Mário em KLAXON. Os editoriais e as resenhas de livros ficam a seu cargo. Disso ele se desincumbe com muita agilidade e certa graça, mas na base de um gosto-não-gosto que, se tem mais acertos do que erros, nem por isso ultrapassa o plano da disponibilidade subjetiva, dentro de uma genérica defesa do “moderno”. Um Mário de Andrade folclorizante comparece, ainda, com o poema “Lundu do Escritor Difícil” e pesquisas músico-regionais.
Sintoma da progressiva irritação de Oswald – que, no n.º 5, já polemiza com Tristão de Ataíde em torno do Cristianismo – e a publicação do seguinte aviso no n.º 7:
SAIBAM QUANTOS
Certifico a pedido verbal de pessoa interessada que o meu parente Mario de Andrade e ° pior critico do mundo mas ° melhor poeta dos Estados Desunidos do Brasil. De que dou esperança.
JOÃO MIRAMAR
A irritação viraria descompostura na 2.ª dentição da revista, que brota com dentes muito mais afiados na pagina dominical do “Diário de São Paulo” de 17-3-29,um mês depois de se extinguir a primeira série.
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2.ª Dentição. A fase em que a Antropofagia vai adquirir os seus definitivos contornos como Movimento. Raul Bopp permanece, revezando-se na direção com Jaime Adour da Câmara. Geraldo Ferraz é o Secretário da Redação (“Açougueiro”, na terminologia antropofágica). Com Oswald de Andrade e Oswaldo Costa à frente, os “antropófagos” descarregam todas as suas baterias, sob nome próprio ou através de um dilúvio de pseudônimos mais ou menos botocudos ou trocadilhescos: Cunhambebinho, Odjuavu, Japi-Mirim, Freuderico, Jaboti, Braz Bexiga, Julio Dante, Cabo Machado, Tamandaré, Pinto Calçudo, Poronominare, Guilherme da Torre de Marfim, Cunhambebe, Coroinha, Menelik (o morto sempre vivo), Marxilar, Piripipi, Tupinambá, Pão de Ló, Le Diderot, Jacó Pum-Pum, Seminarista Voador e outros. Destes, sabe-se seguramente que Tamandaré, que assinava os terríveis Moquéns, era Oswaldo Costa. Pinto Calçudo (personagem do Serafim), Freuderico (Freud + Frederico Engels ou Nietzsche?), Jacó Pum-Pum (o Pim-Pim era Raul Bopp) têm todo o jeito de Oswald. Transferindo-se para a página de jornal, a REVISTA DE ANTROPOFAGIA só aparentemente empobreceu… Ganhou dinamicidade comunicativa. A linguagem simultânea e descontinua dos noticiários de jornal foi explorada ao máximo. Slogans, anúncios, notas curtas, a-pedidos, citações e poemas rodeiam um ou outro artigo doutrinário, fazendo de cada página, de ponta a ponta, uma caixa de surpresas, onde espoucam granadas verbais de todos os cantos. Um contrajornal dentro do jornal.
Mas o que pretendiam, afinal, os renovados “antropófagos” com o terrorismo literário de sua página explosiva?
Restabelecer a linha radical e revolucionária do Modernismo, que já sentiam esmaecer-se na diluição e no afrouxamento. E mais do que isso. Lançar as bases de uma nova ideologia, a última utopia que Oswald iria acrescentar ao que chamaria mais tarde “a marcha das utopias.”
É disso que tratam os artigos que atuam como “editoriais” da página. Alguns dos principais, sob o título de Antropofagia, datados uma ou outra vez do Ano 375 da deglutição do Bispo Sardinha, a maneira do Manifesto Antropófago. Os Moquéns, de Tamandaré (Oswaldo Costa). E outras intervenções explícitas ou implícitas de Oswald e Oswaldo.
A Antropofagia não quer situar-se apenas no plano literário. Ambiciona mais. “A descida antropofágica não é uma revolução literária. Nem social. Nem política. Nem religiosa. Ela é tudo isso ao mesmo tempo.” (N.º 2 – De Antropofagia). Condenando “a falsa cultura e a falsa moral do ocidente”, os “antropófagos” investem contra os espiritualistas, os metafísicos, e os nacionalistas de inspiração fascista, mas recusam também os extremismos da esquerda canônica: “Nós somos contra os fascistas de qualquer espécie e contra os bolchevistas também de qualquer espécie. O que nessas realidades políticas houver de favorável ao homem biológico, consideraremos bom. E nosso.” ( … ) Como a nossa atitude em face do Primado do Espiritual só pode ser desrespeitosa, a nossa atitude perante o marxismo sectário será também de combate. ( … ) Quanto a Marx, considerarno-lo um dos melhores “românticos da Antropofagia”. (N.º 1 – De Antropofagia). Um saudável anarquismo parece animal’ o grupo, enquanto busca a definição de um novo humanismo, revitalizado pela visão do homem natural americano.
Se não se preocupam exclusivamente com literatura, não deixam os “antropófagos” de fazer a crítica interna do Modernismo e o corpo de delito de todos quantos, seguidores da primeira hora do movimento, derivaram para uma atitude moderada ou reacionária. Disso se encarrega sistematicamente Oswaldo Costa na série Moquém, dividida em: I – Aperitivo, II – Hors d’Oeuvre, III – Entradas, IV – Sobremesa, V – Cafezinho.
De Hors d’Oeuvre: o valor do Modernismo “é puramente histórico, documental, igual, num certo sentido, ao do arcadismo, do romantismo, do parnasianismo e do simbolismo, entretanto superior a todos eles porque já representava, de fato, uma tentativa de libertação. ( … ) Mas não compreendeu o nosso “caso”, não teve coragem de enfrentar os nossos grandes problemas, ficou no acidental, no acessório, limitou-se a uma revolução estética – coisa horrível – quando a sua função era criar no Brasil o pensamento novo brasileiro. Se o índio dos românticos era o índio filho de Maria, o índio dele era o índio major da Guarda Nacional, o índio irmão do Santíssimo. O movimento modernista foi, assim, uma fase de transição, uma simples operação de reconhecimento, e nada mais. Daí a pouca ou nenhuma influência que ele exerceu sobre os espíritos mais fortes da geração. A confusão que trouxe foi tamanha que à sua sombra puderam se acomodar, numa democracia de bonde da Penha, o sr. Sérgio Buarque de Hollanda e o sr. Ronald de Carvalho, o sr. Mário de Andrade e o sr. Graça Aranha, e até o sr. Guilherme de Almeida.”
O requisitório de Hors d’Oeuvre prossegue: “ao Modernismo, movimento unicamente artístico, faltou exatamente sensibilidade artística.” ( … ) Mas o movimento modernista não produziu coisa alguma? Produziu. MACUNAÃMA.” Ressalvando Macunaíma, “o nosso livro cíclico, a nossa Odisséia”, que “os antropófagos reivindicam para si”, Oswaldo Costa arremete contra a poesia dos modernistas da época: “a nossa poesia se libertou de uns para escorregar noutros preconceitos. Ao invés da poesia essencial, o que temos – na “escola mineira” e nos intelectuais do nordeste influenciados pelo sr. Mário de Andrade, a exceção de Jorge de Lima e de Ascenso Ferreira, nos quais ponho as minhas esperanças – e poesia de acidentes, de ornatos, de detalhes, de efeitos. Pensamento novo não criamos.”
De Entradas: “Que espírito novo trouxeram à nossa poesia, por exemplo, Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida, que o sr. Mário de Andrade não se cansa de enaltecer, e, como, quando e porque Antonio de Alcântara Machado reformou a nossa prosa?” As transigências de Mário de Andrade (“mutirão de sabença da r. Lopes Chaves”) não são poupadas: “Foguetes à poesia bobalhona de Augusto Frederico Schmidt, peguem na madeira. Correspondência amorosa com o que há de mais medíocre na intelectualidade do Brasil inteiro, zumbaias a Alcântara Machado e outras bexigas da nossa Barra Funda literária. ( … ) Quem classificou de finíssimo o ouvido de poeta do sr. Alberto de Oliveira, no que, aliás, acertou porque o farmacêutico é isso mesmo – poeta de ouvido. Quem faz discursos ao sr. Gomes Cardim, credo! não somos nós, antropófagos, que graças a Deus literatos não somos. É o sr. Mário de Andrade, o cérebro mais confuso da crítica contemporânea.” Pergunta final: “em sete anos que resultou para nós da Semana de Arte Moderna?”
Em Cafezinho, o último artigo da série de Moquéns, resumia-se a carga contra o “falso modernismo”, comparado ao índio que Oswaldo Teixeira desenhara para o centenário de Alencar: “O índio do sr. Teixeira é a fotografia fiel do falso modernismo brasileiro. Como ele de índio só tem a intenção do sr. Teixeira, o falso modernismo brasileiro só tem o rotulo.” Por trás dele – concluia-se – está ACADEMIA. E os modernistas? “Empalhados como pássaros de museu, vivem agora nas estantes acadêmicas, purgando o remorso da Semana de Arte Moderna.” Conselho antropófago: “A rapaziada deve se prevenir contra a mistificação. Deve reagir a pau.”
E o pau comeu, brandido pelos Oswaldos e todos os seus pseudônimos, contra os modernistas academizantes. Em “Mário de Andrade, Alcântara e outras expressões da timidez acadêmica ou da modernidade tímida”. Em Graça Aranha: “O acadêmico carioca é um homem confuso e sem espírito, cuja inteligência inutilmente se esforça em atrapalhar todas as noções conhecidas, todas as noções copiadas.” Em Alcântara Machado: “O burguês brilhante”…”Ficou sendo o nosso França Júnior, como já disse Menotti. Mas para que mais França Júnior?”…”O que conduziu Alcântara na estréia foi o prefácio de Pathe-Baby. Por esse caminho, ele ia bem. Traiu-se. Virou importante. Carioca. Não nos interessa.” Em Mário de Andrade: “O nosso Miss S. Paulo traduzido no masculino”…”Salva-o ‘Macunaíma’.” Provável evangelho de que ele se nega a consciência. Por que?” Em Guilherme de Almeida, “Pierre Louis de celulóide”. Em Paulo Prado, que cometeu os “absurdos incríveis de atribuir ao ouro e à luxúria todos os nossos excessos infantis.” Nos espiritualistas. Em Tristão de Ataíde (“Tristinho de Ataúde”, “Conselheiro Acácio do Modernismo”) e seu Primado Espiritual (“Prima do Espiritual”). Em Tasso da Silveira e Festa, “revista caracteristicamente provinciana”, “vanguarda que marcha com mil precauções para não estragar os sapatos”. Em Augusto Frederico Schmidt, “vate místico”, o primeiro prontuariado do “fichário antropofágico”. Nos verdeamarelistas. Em Menotti del Picchia, “Le Menotti del Piccollo”, “a Tosca do nosso analfabetismo literário”, “o Julio Dantas de Itapira”. Em Cassiano Ricardo, “cuja ossada, descoberta por nós, veio confirmar a existência do homem fóssil da Lagoa Santa”. Em Candido Mota Filho: “o cândido sr. Motta Filho confunde tudo. Depois acha tudo confuso”. Em Plínio Salgado, acusado de pastichar Oswald, e na sua Escola da Anta (“a Anta morreu de indigestão retórica”). E noutros mais. Em Ribeiro Couto, “vate consular”. Em Drummond, que se solidariza com Mário, dizendo que “toda literatura não vale uma boa amizade”…
O manifesto do Verdeamarelismo, ou da Escola da Anta, publicado no “Correio Paulistano”, em 17 de maio de 1929, e contestado no n.º 10 da revista (12-6-29), no artigo Uma adesão que não nos interessa com implacável lucidez: “Não! não queremos como os graves meninos do verdeamarelo restaurar coisas que perderam o sentido – a anta e a senhora burguesa, o soneto e a academia.” Diante do manifesto desse arremedo de movimento, pretensamente vanguardista, mas que afirmava: “Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro séculos, a alma de nossa gente, através de todas as expressões históricas”, – o tacape antropófago vibrou sem piedade: “O que louvamos nesses cinco abnegados dedinhos de mão negra conservadora e uma coragem – a de se declararem sustentáculos de um ciclo social que desmorona por todos os lados e grilos de um passado intelectual e moral que nem na Itália está mais em voga! Pândegos!” ( … ) “Os verdeamarelos daqui querem o gibão e a escravatura moral, a colonização do europeu arrogante e idiota e no meio disso tudo o guarani de Alencar dançando valsa. Uma adesão como essa não nos serve de nada, pois o “antropófago” não é índio de rótulo de garrafa. Evitemos essa confusão de uma vez para sempre! Queremos o antropófago de knicker-bockers e não o índio de ópera.”
Descontados os aspectos mais superficiais e panfletários das investidas da 2.ª dentição, é preciso reconhecer que os antropófagos puseram o dedo na ferida do Modernismo. Que nascera comprometido, e agora, apenas engatinhando, já se encaminhava, em rebanho, para as Academias. Nem o “conflito fraterno” entre Oswald e Mário pode ser reduzido – como já quiseram fazer crer – a questões pessoais ou de suscetibilidade. Se Mário de Andrade foi talvez mais duramente atacado do que os outros é porque, de fato, recuou. Em 1924, no posfácio a Escrava que não é Isaura, ele já dizia suspeitamente: “acho que um poeta modernista e um parnasiano todos nos equivalemos e equiparamos”. E porque os antropófagos sentiam na deserção progressiva do criador de Macunaíma – a epopéia antropofágica que eles admiravam a ponto de querer “confiscá-la para si” – uma perda bem maior do que as outras… Em suma, Oswald e sua tribo de antropófagos se insurgiram contra a descaracterização e a diluição da revolução modernista. Podem ter-se excedido numa ou noutra tacapada. Mas estariam cheios de razão.
A despeito do predomínio dos artigos e notas de briga, a REVISTA DE ANTROPOFAGIA, nesta 2.ª fase, não descuidou da colaboração criativa. Sobressaem os dois poemas de Oswald (Sol, com seus cortes bruscos, e o reiterativo e lapidar Meditação no Horto), que não constam de seus livros. Raul Bopp publica trechos de seu poema mais significativo, Cobra Norato. Murilo Mendes aparece com a excelente Canção de Exílio e outras composições da série da História do Brasil. O colaborador internacional é Benjamin Péret, que, mesmo não valendo muita coisa como poeta, representava, de qualquer forma, o surrealismo, ainda em plena ebulição. É certo que vários dos poemas publicados ficam numa zona confinante com a do verdeamarelismo. Caso dos poemas regionalistas de Jorge de Lima. Mas foram os verdeamarelistas que tentaram grilar o terreno da “poesia pau brasil”. E, além disso, há em geral nos antropófagos uma nota sempre mais agressiva, mais debochada e zombeteira, que falta aos subprodutos bem-comportados e ufanistas dos verdeamarelos.
Dois poemas, ainda, me chamam a atenção pela radicalidade de suas proposições. São assinados por pseudônimos, mas têm a cara de Oswald. Um, no n.º 6, e um “ready made”, extraído da sucessão das palavras no dicionário:
O POEMA DE CÂNDIDO DE FIGUEIREDO
Z, 1457
zabaneira
zabelé
zabra
zabucajo
zabumba
zaburro
zaco
…
Cunhambebe
Outro, um epigrama contra os verdeamarelistas:
COMBINAÇÃO DE CORES
Verdamarelo Dá azul?
Não.
Dá azar.
Jacó Pum-Pum
Desenhos (e preprodução de quadros) de Tarsila, Cícero Dias e a revelação de Pagu (Patrícia Galvão), como desenhista e poeta, complementam esse quadro criativo.
Mas a caixa de surpresas da página é cheia de notas instigantes. Por exemplo, a anedota Confúcio e o Antropófago (no nº 1) que, hoje, tem certo sabor maoísta. As citações e a defesa de Sade (n.º 5): “Por enquanto Sade espera que a fogueira abrase o mundo.” A discussão-manifesto em torno da Gestalt e da Antropofagia, por Oswald (n.º 9). A notícia sobre o lançamento das bases de um “Direito Antropofágico” pelo jurisconsulto pontes de Miranda – “um direito biológico, que admite a lei emergindo da terra, à semelhança das plantas.” (n.º 13) O penúltimo número da REVISTA – 19-7-1929 – dá notícia da primeira exposição de Tarsila no Brasil, inaugurada no dia anterior no Rio de Janeiro. E anuncia a organização do Primeiro Congresso Brasileiro de Antropofagia, para o estudo de “algumas reformas de nossa legislação civil e penal e na nossa organização político-social”. Entre essas teses estão: o divórcio, a maternidade consciente, a impunidade do homicídio piedoso, a nacionalização da imprensa, a supressão das academias e sua substituição por laboratórios de pesquisas. Ilustrando a página, “Antropofagia”, quadro n.º 1 do catálogo da exposição de Tarsila. O último número — 1-8-1929 – traz uma ampla reportagem sobre as repercussões da mostra. O editorial De Antropofagia é curto e virulento. Entre outras coisas: “Somos pelo ensino leigo. Contra o catecismo nas escolas. Qualquer catecismo. Não é possível fazer o Brasil embarcar na canoa furada da Prima da Espiritual. Reagiremos pois contra toda e qualquer tentativa nesse sentido. Viva Freud e nosso padrinho padre Cícero!”
Conta Raul Bopp que “cresciam, diariamente, as devoluções de jornais, em protesto contra as irreverências antropofágicas”. Por causa dessas reações, Rubens do Amaral viu-se compelido a acabar com a página. O Congresso de Antropofagia também gorou. Raul Bopp: “Desprevenidamente, a libido entrou, de mansinho, no Paraíso Antropofágico. Cessou, abruptamente, aquele labor beneditino de trabalho. Deu-se um “changé de dame” geral. Um tomou a mulher do outro. Oswaldo desapareceu. Foi viver o seu novo romance numa beira de praia, nas imediações de Santos. Tarsila não ficou mais em casa.” Desagregou-se o grupo. Em outubro de 1929 vieram o craque da Bolsa e a crise do café. Oswald e Pagu se engajaram no Partido Comunista. E o criador de Serafim Ponte Grande julgando-se curado do “sarampo antropofágico”, virou “casaca de ferro na Revolução Proletária”.
As idéias e concepções da Antropofagia foram postas de lado por muito tempo. Só em 1945, depois de sua ruptura com os comunistas, é que Oswald, intelectualmente recuperado, se dispôs a aprofundar os temas antropofágicos. E o que fará especialmente em dois estudos: A Crise da Filosofia Messiânica (1950) e A Marcha das Utopias (1953). Pode-se então compreender, com maior precisão, a seriedade do pensamento oswaldiano e da tese antropofágica, concebida por ele como “a terapêutica social do mundo moderno”. Mas a REVISTA DE ANTROPOFAGIA fica como documento vivo das primeiras refregas, exemplo até dramático de uma luta que Oswald travou nas condições as mais difíceis, praticamente ilhado, com alguns poucos, contra a maré da geléia geral que acabou envelopando quase todos os seus companheiros da revolução modernista.
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Sabe-se que a REVISTA DE ANTROPOFAGIA e O MANIFESTO ANTROPÓFAGO tiveram um precedente na revista CANNIBALE e no MANIFESTE CANNIBALE DADA de Francis Picabia, ambos de 1920. Não há nada de espantoso nisso. Com os sucessos arqueológicos e etnológicos e a voga do primitivismo e da arte africana, no começo do século, era natural que a metáfora do canibalismo entrasse para a semântica dos vanguardistas europeus. Mas, dentro de DADA, o “canibal” não passou de uma fantasia a mais do guarda-roupa espaventoso com que o movimento procurava assustar as mentes burguesas. Com Oswald foi diferente. Embora citasse expressamente Montaigne e Freud (Totem e Tabu é de 1912), é possível que ele tenha recebido alguma sugestão do canibalismo dadaísta, entrevisto nas viagens que fez a Europa, entre 1922 e 1925. Mas a ideologia do Movimento Antropófago só muito artificialmente pode ser assimilada ao Canibalismo picabiano, que, por sinal, não tem ideologia definida, nem constitui, em si mesmo, movimento algum. CANNIBALE, revista dirigida por Picabia, “com a colaboração de todos os dadaístas do mundo”, só teve dois números: 25 de abril e 25 de maio de 1920. Não há nada na revista, nenhum texto, em que se leia qualquer plataforma que pudesse identificar um “movimento canibal”. Quanto ao MANIFESTO CANIBAL DADA, publicado em DADAPHONE (o 7.° e ultimo número da revista DADA – 7 de março de 1920), é um típico documento dadaísta: “…dada, só ele, não cheira a nada, não é nada, nada, nada. e como vossas esperanças: nada. como vossos paraísos: nada. como vossos ídolos: nada.” Um niilismo que nada tem a ver com a generosa utopia ideológica da nossa Antropofagia.
Não. Nem o MANIFESTO ANTROPÓFAGO nem a REVISTA DE ANTROPOFAGIA se parecem com os seus antecessores picabianos, por mais que os bandeirinhas da nossa crítica judicativa queiram pilhar Oswald em impedimento. Como diz Décio Pignatari: “Toda vez que vem à tona, o cadáver de Oswald de Andrade assusta. E sempre aparece um prático audaz disposto a conjurar o cachopo minaz.” Mas como observou Benedito Nunes, na lúcida série de artigos O Modernismo e as Vanguardas (Acerca do Canibalismo Literário), em que pulveriza o auto-de-fé de um dos martins-pescadores da nossa crítica literária, que tentava reduzir mecanicamente as matrizes do “canibal” dada-futurista a “antropofagia” brasileira: “a imagem do canibal estava no ar. Por isso quem se aventure a estabelecer os antecedentes literários privilegiados que ela teve, será obrigado a recuar de autor, indefinidamente.” O próprio Benedito Nunes cita, como exemplo, Alfred Jarry e os Almanaques do Père Ubu, “um dos quais registra guloseimas para os amateurs anthropophages”. Do mesmo Jarry, eu lembraria um texto talvez ainda mais explícito: o artigo Anthropophagie, que é de 1902, e do qual extraí uma das epígrafes deste estudo. Depois de analisar as dimensões da Antropofagia na concepção de Oswald de Andrade, assim conclui Benedito Nunes: “A imagem oswaldiana do antropófago e o conceito respectivo de assimilação subordinam-se, portanto, a uma forma de concepção que os vários canibalismos literários da época reunidos não podem preencher.”
Oswald, de resto, clarificando o seu pensamento, distinguiu, em A Crise da Filosofia Messiânica, a antropofagia ritual do mero canibalismo (antropofagia por gula ou fome): “A antropofagia ritual é assimilada por Homero entre os gregos e segundo a documentação do escritor argentino Blanco Villalta, foi encontrada na América entre os povos que haviam atingido uma elevada cultura – Asteca, Maias, Incas. Na expressão de Colombo, comian los hombres. Não o faziam porém, por gula ou por fome. Tratava-se de um rito que, encontrado também nas outras partes do globo, dá a idéia de exprimir um modo de pensar, uma visão do mundo, que caracterizou certa fase primitiva de toda a humanidade. Considerada assim, como weltanschauung, mal se presta à interpretação materialista e imoral que dela fizeram os jesuítas e colonizadores. Antes pertence como ato religioso ao rico mundo espiritual do homem primitivo. Contrapõe-se, em seu sentido harmônico e comuniaI, ao canibalismo que vem a ser a antropofagia por gula e também a antropofagia por fome, conhecida através da crônica das cidades sitiadas e dos viajantes perdidos. A operação metafísica que se liga ao rito antropofágico é a da transformação do tabu em totem. Do valor oposto, ao valor favorável. A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu.”
Em matéria de precursões, mais intrigante é constatar que a poesia “antropófaga”, na base do Indianismo à s avessas idealizado por Oswald já a praticava, em temas e formas, cinqüenta anos antes, um outro Sousa Andrade – o maranhense Sousândrade -, que no Canto II do Guesa (1874) tem coisas como esta:
(Antropófago HUMÃUA a grandes brados)
– Sonhos, flores e frutos,
Chamas do urucari!
Já se fez cai-a-ré,
Jacaré!
Viva Jurupari! (Escuridão. Silêncio)
A observação não escapou a Edgard Cavalheiro, que intitulou um seu artigo sobre Sousândrade, de 1957: O Antropófago do Romantismo. O que vem confirmar a vocação autônoma da antropofagia brasileira – a sua congenialidade, como diria Antonio Candido – relativamente à s concepções européias.
Sousândrade. Eis aí um autêntico precursor. Isso, sem esquecer o conselho de Borges: “No vocabulário crítico, a palavra precursor é indispensável, mas teríamos de purificá-la de toda a conotação polêmica ou de rivalidade. A verdade é que cada escritor cria os seus precursores. A sua obra modifica a nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro.”
Em A Marcha das Utopias e A Crise da Filosofia Messiânica, na década de 50, Oswald procura dar mais consistência à s suas idéias em torno da Antropofagia, vista como “uma filosofia do primitivo tecnizado”. Fundindo observações colhidas em vários autores, mas principalmente em Montaigne (“De Canibalis”), Nietzsche, Marx e Freud, redimensionados pelas teses de Bachofen sobre o Matriarcado, cria a sua própria Utopia de caráter social (“No fundo de cada Utopia não há somente um sonho, há também um protesto”).
Imaginava o poeta que as sociedades primitivas seriam capazes de oferecer modelos de comportamento social mais adequado à reintegração do homem no pleno gozo do ócio a ser propiciado pela civilização tecnológica. Para Oswald, o ócio a que todo homem teria direito fora desapropriado pelos poderosos e se perdera entre o sacerdócio (ócio sagrado) e o negócio (negação do ócio). Para recuperá-lo, propunha a incorporação do homem natural, livre das repressões da sociedade civilizada.
A formulação essencial do homem como problema e como realidade era capsulada neste esquema dialético: 1.º termo: tese – o homem natural; 2.º termo: antítese – o homem civilizado; 3.º termo: síntese – o homem natural tecnizado. A humanidade teria estagnado no segundo estágio, que constitui a negação do próprio ser humano, e no qual fora precipitada pela cultura “messiânica”.
Contra a cultura “messiânica”, repressiva, fundada na autoridade paterna, na propriedade privada e no Estado, advogava a cultura “antropofágica”, correspondente à sociedade matriarcal e sem classes, ou sem Estado, que deveria surgir, com o progresso tecnológico, para a devolução do homem à liberdade original, numa nova Idade de Ouro. Conotação importante derivada do conceito de “antropofagia” oswaldiano é a idéia da “devoração cultural” das técnicas e informações dos países superdesenvolvidos, para reelaborá-las com autonomia, convertendo-as em “produto de exportação” (da mesma forma que o antropófago devorava o inimigo para adquirir as suas qualidades). Atitude crítica, posta em prática por Oswald, que se alimentou da cultura européia para gerar suas próprias e desconcertantes criações, contestadoras dessa mesma cultura.
Tudo somado, o grande pecado de Oswald parece mesmo o de ter escrito em português. Tivesse ele escrito em inglês ou francês, quem sabe até em espanhol, e a sua Antropofagia já teria sido entronizada na constelação de idéias de pensadores tão originais e inortodoxos como McLuhan, Buckminster Fuller (Utopia or Oblivion – a utopia tecnológica – mais uma contribuição para a marcha das utopias?), John Cage (Diário: Como melhorar o mundo) ou Norman O. Brown, que em Love’s Body (1966) ressuscita os temas do canibalismo freudiano e do matriarcado de Bachofen. Pensadores da América, todos eles, por sinal.
A Antropofagia, que – como disse Oswald – “salvou o sentido do modernismo”, é também a única filosofia original brasileira e, sob alguns aspectos, o mais radical dos movimentos artísticos que produzimos. Por isso é da maior importância que se ilumine o “caminho percorrido”, no qual a REVISTA DE ANTROPOFAGIA é etapa indispensável. Ilhado pela ignorância e pela incompreensão, Oswald parecia ter perdido a batalha. “Venceu o sistema de Babilônia e o garção de costeleta”, chegou a escrever. Mas ele ressuscitou, nos últimos anos, para nutrir o impulso das novas gerações. Tabu até ontem, hoje totem. No necessário banquete totêmico não devemos, porém, comemorar, mas comer a revista. Como ele queria. SOMOS ANTROPÓFAGOS.
Augusto de Campos
São Paulo, 1975
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